quinta-feira, abril 27, 2006

... como um coelho.

No final do dia chegou a notícia.

Ontem um colega de tribunal largou sua função. Saiu como quem sabe o que quer e, mais ainda, o que não quer mais. Todos reconhecem seu estresse e seu legítimo chute no pau da barraca. Foi embora, entregou o que tinha para quem quiser pegar. Foi para casa e depois contou que bateu em um carro. E que foi falando sozinho. E que a mulher reclamou.

Olhos no monitor e nos autos, entre despachos, mandados, ofícios, petições, memorandos. Ouço o desabafo: "meu trabalho não termina, há coisas de 2005, 2004; tenho pensado em vir... num sábado! Para quê? procurar essas coisas impossíveis...".

No momento seguinte procuro o espelho; olho em volta para ver se há alguém a observar; encaro meu reflexo e inevitavelmente refaço a habitual pergunta: “Vamos no mesmo caminho? não, eu não quero. O noticiário político, econômico, local, policial nos perturba. O trabalho não é pouco e a cada dia rende crias, procria, multiplica-se. Gera embargos, agravos, recursos, razões opostas; nunca terminará, dada a sua natureza. Vamos no mesmo caminho? não, não quero. Então vou embora pra outro lugar. Vou largar tudo, experimentar. Ah, mas e os vínculos, os laços, os nós... É, deixa de lado, depois penso nisso. Vou pra casa, já é tarde. Até amanhã”.

terça-feira, abril 25, 2006

Estrada Real. Vida real.

Nos últimos dias vislumbrei diversas formas de abordar o tema que se segue. Poderia enfatizar a aventura rural ou focalizar o absoluto esgotamento físico; poderia ainda contrapor a vida simples e saudável no campo à estressante sobrevivência na grande cidade. Também tentar narrar a sensação de deslumbramento frente a uma maravilha da natureza, falar da beleza arquitetônica de Diamantina – rivalizando-se às igualmente históricas Ouro Preto e Tiradentes – ou até mesmo falar de um cãozinho cuja presença foi completamente inusitada, visto onde foi encontrado. Tudo é importante e se completa.

O convite era irrecusável: viajar ao longo da famosa Estrada Real, partindo de Belo Horizonte até Diamantina. A certeza de encontrar inúmeros lugarejos com sua gente de bom coração e vida simples era magnética. A expectativa de conhecer lugares sensacionais, de beleza estonteante, causava ansiedade. Como não voltar a Minas Gerais? Pois lá retornamos, eu e Clítia.

Tenho para mim que fotos podem transmitir uma enorme parcela da beleza de algo ou alguém. No entanto, a experiência física, com todos os sentidos recebendo diversas informações, não tem como ser superada.

O contato com os habitantes de Conceição do Mato Dentro, São Gonçalo do Rio das Pedras e de toda a região da Serra do Cipó é revitalizante. Foi uma grata surpresa encontrar em São Gonçalo o povo dançando no largo central do vilarejo, celebrando nossa cultura, com danças afro e a congada. A coroar tudo isso está “A Cachoeira”.

Após conhecê-la, busquei informações na Internet. Sua presença esguia e vibrante me fascinou. Sua beleza estética foi hiptonizante. O som que emitia, por vezes agudo, como velozes estalidos de trovoada próxima e no momento seguinte rouco, preenchendo o ambiente, como trovão distante, me arrebatou. Há diversos sites, a maioria de eco-turismo, que falam sobre a Cachoeira Tabuleiro (assim, com maiúsculas, porque merece). A caminhada ao seu encontro, por cerca de duas horas descendo uma encosta – muitas vezes íngreme – e depois enfrentando pedras de todos os tamanhos e angulações, vai desvendando uma beleza de ficção; uma meia circunferência de rocha perfeitamente vertical, alcançando cerca de 300 metros de altura. Lá embaixo a água explode sobre pedras e um lago de águas cor de mate, em vigoroso movimento. O deslocamento daquela colossal coluna d’água produz um constante vento na base da cachoeira, muito bem-vindo àqueles que ali chegaram para desfrutar do espetáculo natural.

Tabuleiro é um lugar de beleza inebriante, comovente mesmo, que, justamente por isso, nos aproxima inevitavelmente de divagações sobre o desconhecido, nos aproxima daquelas questões transcendentes, religiosas, fundamentais – e nos afastam dos persistentes e comparativamente insignificantes problemas cotidianos. Talvez por isso aquele esquálido cãozinho branco, encontrado junto à base da cachoeira e que nos pareceu perdido, faminto e fadado ao ocaso por inanição, tenha se mostrado como uma espécie de espírito vivo do lugar, retornando pela trilha com bastante vivacidade, parando a toda hora, olhando para trás em nossa direção, nitidamente nos indicando o caminho – coisa muito necessária, sabendo-se que já íamos nos perdendo por duas vezes no retorno à “civilização” e que a noite se aproximava perigosamente.

Quanto à dificuldade do "passeio" até a cachoeira, deixo a descrição a cargo do site oficial da Estrada Real (www.estradareal.org.br), aproveitando para uma informação adicional: "Para se chegar ao poço da Cachoeira, a partir do povoado de Tabuleiro, a maneira mais usual é fazendo um trekking, com duração aproximada de 02:00hs e com um nível alto de dificuldade. O Guia Quatro Rodas a classificou como a cachoeira mais bonita do Brasil ".

À noite, já no minúsculo, encantador e pacífico povoado chamado singelamente “Milho Verde”, o céu se encheu de infinitos astros, com algumas estrelas cadentes singrando a abóboda. A noite, com seu céu negro fartamente pontilhado por brilhantes, teve apenas como companhia os sons dos pequenos animais silvestres. A exuberância da natureza, com suas belezas e desafios, me concedeu o privilégio de esquecer do nosso mundo, cheio de pelejas e conquistas muitas vezes tão artificiais e de discutíveis propósitos.

terça-feira, abril 18, 2006

100.000 pontos

Em minha santa ignorância ("santa", por força de expressão; a ignorância é ambígua, pode trazer conforto para seu detentor mas, em boa parcela das vezes, acaba por ser danosa. Na presente hipótese - que será revelada a seguir - tendo em vista minha total falta de interesse objetivo no caso, posso arriscar nomeá-la "santa") não entendo o motivo de tanta celeuma e defesa quanto à sobrevida da VARIG. Se se dá por puros motivos afetivos é um disparate.

Procede tal dúvida porque há pouco tempo, em enquete no “Globo Online”, a maioria dos votantes era a favor da salvação da VARIG porque a mesma “sempre foi uma referência dos turistas brasileiros no exterior” e suas lojas são “um ambiente agradável para aqueles afastados do solo pátrio”...

Levando em conta nossa arraigada verve emotiva, até consigo entender que boa parcela da população, não formada por funcionários da empresa, que não tenha amigos, familiares ou conhecidos na companhia, defenda – até certo ponto - a famosa viação aérea, baseada em felizes lembranças de viagens ou velhos jingles de campanha ("Estrela brasileira no céu azul (...) Varig, Varig, Varig!").

Entendo, ainda, que por ser uma empresa que emprega milhares de pessoas diretamente, além de movimentar economicamente outro bom quinhão de brasileiros, causará estragos de ordem financeira a toda essa gente.

(Como sempre as partes mais apaixonadas pelo debate defendem nacos da verdade. Dizem que a VARIG foi prejudicada por anos, suportando sozinha rotas totalmente deficitárias, para cidades do norte do país e que, quando “as novas” companhias chegaram, só “pegaram” rotas “de primeira”. A VARIG é colocada como absoluta vítima, coisa que – ao revés da intenção dos que a defendem – é um acinte à toda a organização administrativa da empresa. “As novas” seriam, portanto, “malandras” e a VARIG seria a pobre coitada; claro que não é nada assim).

Em contrapartida, vejo – devido ao ofício e através da trivial leitura dos jornais - que vários grupos têm decretadas suas falências a todo momento. Quase em sua totalidade são micro e pequenas empresas mas, "de grão em grão", o trabalhador fica na miséria (não esqueçamos o "quase" no início da oração: instituições financeiras e de comércio de grande porte faliram nesses anos, deixando seus ex-funcionários, credores e clientes em maus lençóis sem que tenha havido tal rebuliço pelo Mappin, Garson, Mesbla, Banco Econômico, Ultralar, Delfim...). O que é definitivamente estranho é ver alguns jornalistas, apelando para a boa-fé de muita gente, fazerem furtiva - ainda que paradoxalmente insistente - propaganda pela recuperação da "nossa" VARIG, ocultando os presumíveis reais motivos: muitas ações da empresa em gavetas próprias ou próximas.

Ou, quem sabe, apenas muitos pontos de milhagem.

segunda-feira, abril 17, 2006

Liberdade à tardinha

Minas Gerais é berço de muitos brasileiros ilustres, motivos de orgulho para o país: João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Pelé. Alberto Santos Dumont, Ary Barroso e Tiradentes.

Tem o tamanho aproximado da península ibérica, sendo maior que a Espanha ou a França e sua história muitas vezes se confunde com a história da nação brasileira. Minas é um estado de fértil riqueza mineral e calorosa presença humana. O atraente paladar de sua culinária típica combina-se perfeitamente com o modo de ser do mineiro: amistoso, tradicional.


A cena durou o tempo de poucos segundos. Vinha dirigindo lentamente por uma sinuosa, estreita e tranqüila estrada no interior de Minas, aproveitando o encantamento da bucólica paisagem rural, próximo a Santa Bárbara do Tigúrio. Alcanço um povoado, um pequeno grupo de casas, à beira da estradinha. Quase sinto obrigação de pedir desculpas por impor àquele sossego o ruído do motor do automóvel.

Três homens estão de pé à margem do caminho. Um deles, mais velho que os outros dois, está pronto para arremessar algo que tem na mão, mirando em um ponto à sua frente, distante uns vinte metros na terra batida. Os demais observam. No exato momento em que passo pelos três, o homem lança o que parece ser um pequeno disco, cerca de doze centímetros de diâmetro. O projétil alça um breve vôo, uma suave parábola, e cai à terra, deslizando por alguns metros, passando no estreito espaço que separa dois pequenos pinos erguidos no terreno. O jogo lembra a bocha ou aquele jogo, visto no cinema, de arremesso de ferradura. Não sei ao certo qual o objetivo do homem mas parece que foi um bom lance. Se o objetivo era fazer a peça passar naquele apertado espaço, atingiu a perfeição. Ainda que seu intento fosse derrubar algum dos pinos, chegou muitíssimo perto disso. De um modo ou de outro, demonstrou grande destreza. Agora o pequeno grupo já tinha ficado para trás. Sua imagem se mantinha no retrovisor e, logo, apenas na mente.

O lançamento do velho homem, em meio àquele cenário quieto e sereno, em um final de tarde de domingo, pareceu boa síntese da vida e do espírito do lugar. Seu preciso arremesso demonstra a incessante repetição daquele gesto, prática de longos anos. O “mundo exterior” não afeta a rotina dos homens. Não há shopping centers, não há futebol ou aborrecidos programas de variedades da TV. Em meio ao silêncio daquela paragem, perturbado vez por outra por um carro que passa, eles se concentram em seu anônimo e antigo jogo.

Como o tradicional e suave, mas não menos firme, comportamento mineiro.

segunda-feira, abril 10, 2006

Manfred

E a moça Richthofen voltou à cena. Personagem da principal reportagem do Fantástico e capa da revista Veja, já foi, inapelavelmente, julgada pela opinião pública e pela imprensa. Cochichos descuidados com seu tutor jogaram por terra qualquer chance de alguém crer que ali encontra-se uma "boa menina". Sua tentativa de choro, sua roupa e voz infantilizadas de nada servem mais à sua causa, a própria liberdade.

Sempre que vejo ou leio sobre essa infeliz e perturbada Suzane me vem à mente o Barão von Richthofen que, foi dito, seria seu tio-avô. Tenham ou não relação familiar, sanguínea, o idêntico e elegante sobrenome abre espaço para comparações.

O que ambos simbolizam dificilmente poderia ser mais distante. Ela, a filha desequilibrada, ingrata, capaz de matar o pai e a mãe. Não "só" matar mas matar com dolo e crueldade.

Ele, Manfred von Richthofen, lendário ás da aviação militar do II° Reich, idolatrado pelos alemães e respeitado pelos inimigos. Conhecido também como "o último dos cavaleiros", foi um tipo de soldado que - longe das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, onde os jovens morriam em níveis industriais - ainda praticava o "bom combate", sem traições. O "Barão Vermelho", alcunha atribuída por seus inimigos, os ingleses, deixava que seus oponentes seguissem seus destinos: ele nunca perseguia aqueles rivais que saltassem de paraquedas após terem seus aviões abatidos. Em dois anos de campanha essa cena se repetiu oitenta vezes.

Ele, no mais hostil dos ambientes, a guerra, um símbolo de coragem e ética; ela, de imagem doce e no seio familiar, um modelo ímpar de traição: moderna Messalina & Dalila.

"Santa, santa mesmo" ou "Neuróticos!!"

Começa a "so called" Semana Santa e posso dizer que é verdadeiramente santa. Esquecerei por todos esses dias o caminho da labuta, voltando só na longínqua próxima segunda-feira. Por ora, uma história ocorrida há algum tempo: Dia desses passei por dois adolescentes no momento em que cruzávamos, os três, uma vitrine repleta daqueles tênis modernosos, chamativos e estranhamente caros. Um dos rapazes vira para o outro e declara: “olha que tênis neuróticos”. Qualquer coisa virou “neurótica”. Faz parte do vocabulário de parcela dos jovens e outras pessoas nem tão novas. Não sou exatamente contra, embora sinta um certo pesar quanto à extrema pobreza de vocabulário de uma parcela da população, bem como pela facilidade com que essa mesma parcela adere ao próprio vocabulário termos de estação, repetindo-os umas 459 vezes por hora. Um fácil exemplo é “é ruim, hein”, coletado, salvo engano, de uma personagem de novela. Aliás, não é necessário pensar mais que alguns segundos para lembrar de “pra geral fazer” (servindo qualquer outro verbo no infinitivo: geral ficar, geral comer...) ou “fala sério”, passando pelo “ninguém merece” ou sua versão estendida: “fala sério, ninguém merece”. No meio da bandidagem não mais se anuncia “é um assalto! mãos ao alto!”. Que nada: “perdeu, perdeu” resolve bem a situação. Por sinal, acabo de ler que tal expressão foi dita entre deputados, quando da aprovação do relatório final na CPI dos Correios. Imagina, “Perdeu, perdeu (vossa excelência)!”... Mas não quero falar desses termos e figuras políticas. Voltemos ao “neurótico”. Em Minas Gerais seria dito algo como “olha que tênis massa”. Por lá, massa é quase tão popular quanto “trem”. Massa, na verdade, não é gíria “de estação” nem de um grupo. “Massa” é oficial. Um jeito ítalo-mineiro de ser. Seguindo pela calçada dos tênis neuróticos, fui pensando nos termos utilizados através dos anos para demonstrar interesse por determinado bem ou situação; não sou capaz de lembrar de um grande número, mas estou certo de que há pouco tempo o sujeito teria dito “olha que tênis sinistro”, pois tudo era sinistro, parecia que tudo era uma ameaça, nebuloso, escurecido. Muito estranho. Teve (e ainda anda por aí) o “irado”. Acho que pode-se classificar de prosopopéia. “Muita irada essa onda”. Imagino uma onda muito nervosa, xingando, subindo pela Princesa Isabel, inundando o Rio-Sul e o Mourisco. “Só de raiva”. Anos atrás diria eu para o amigo: “olha que tênis maneiro!”, termo que, confesso, ainda utilizo, embora me pareça um tanto anacrônico frente aos meus 30 e tantos anos. Acho que já estou mais para “veja que belo e garboso tênis!”. Passando por bares neuróticos e farmácias sinistras, encontro o termo “chocante”. Não sei precisar de quando ele é; não sei se dos meus anos adolescentes ou de pouco antes; no entanto acho apropriado para expressar admiração por algo. “Chocante” me parece bem próximo de “veja, que tênis extasiante!”, embora eu concorde, como você, que essa frase seria ridícula. E, enfim, arriscando voltar um pouco mais no tempo, chego a um termo que resumia a mesma opinião frente a algo, mas sua utilização necessitava de termos “auxiliares”, por assim dizer. Imagino nos idos de 1965, fãs da jovem guarda, numa calçada da Avenida Copacabana dizendo: “bicho, esse tênis é uma brasa, mora ??!!”. O termo era “brasa” mas a declaração é recheadíssima de significados extras. “Bicho”, “mora”... Que época fértil para gírias! não sei se é pela distância no tempo, mas as acho simpáticas. No amontoado de termos da atualidade, formando a “Absolutamente Nova Gramática da Língua Portuguesa”, abro exceção para uma expressão. Acho grande invenção (embora nunca tenha usado – não por pudor e sim porque sempre me vem algum outro à mente antes dele). É o “já é”. Se o consagrado “já era”, é negativo, expressa término, fim, por sua vez o “já é” inverte o sentido. “Já é” indica concordância e traz consigo a sensação de movimento, de realização imediata de algo em comum. Imagino que, como os “a nível de”, “é ruim, hein” ou “ninguém merece”, o “já é” possa definhar até encontrar sua hora final em meio aos futuros e inevitáveis “tênis neuróticos”. No entanto, deixo consignado: para mim, “já é” é maneiro.

domingo, abril 09, 2006

Natureza Maravilhosa

Tantos problemas e incertezas mas a natureza (ainda) mantém-se gloriosa. Um espetáculo a ser agradecido. A quem? àquele (ou àquilo) que lhe aprouver.

Adaptação mais do que livre da Sagrada Escritura

1 Naquele tempo, o sol já ia alto e Jesus, absorvido em Seus pensamentos, encarando a confusão em que havia se metido - o quão difícil seria redimir aquela gente, a Humanidade – vira-se repentinamente para Pedro e os demais e diz: “Meus irmãos, vamos beber”. Embora uma leve dor de cabeça estivesse lhe incomodando, Pedro prontamente responde: - É claro Mestre. Afinal já é quase meio-dia e esse sol lá fora está de matar. Lázaro, não estou me sentindo muito bem hoje e, já que você andou descansando por uns dias lá no sepulcro, vá buscar umas jarras de água para todos nós. “Água???” bradou o Mestre, com Sua, geralmente, suave voz. “Pois estais louco? Vamos nos servir de umas medidas de vinho, preciso relaxar e, ademais, procuro clarear a mente.” “Mas, Mestre... bebemos vinho ontem até tarde, após o sermão dominical”, retrucou Pedro, dando-se conta, só então, da razão de sua ressaca. “Pedro! já vais começar a me negar? essa não!” “Olha Mestre, com todo o respeito, mas nossa provisão de vinho acabou. Só se o Senhor...”. “Ah, não, não... vocês estão se tornando muito indolentes, esperando que eu faça milagres a rodo. Está bem: se não tem vinho, vamos de cervejinha.” Todos se entreolharam, em silêncio... “Meu caro Judas, vê aí pelas redondezas uma meia-dúzia. Ah, ou melhor... esse pessoal sempre diz que não quer mas, quando chega a cerveja, acabam pedindo um copinho. Traz logo umas três dúzias. Ide, e vê se não demora, hein!” Judas, curvando-se em reverência ao Mestre, logo retira-se do templo, a procura da bebida solicitada pelo Rei dos Reis. 2 Lá dentro, Jesus continua: “ô Pedro, já que vamos tomar uns goles, arruma pra nós aí umas sardinhas fritas pra acompanhar”. “Mas, mas... mas Mestre !!! essa espécie de peixe não tem por aqui !! não dá pra ser algum mais comum não? Aliás, sobrou um tantinho de peixe de ontem...” “Agora essa... Pedro! só hoje já estais me negando pela segunda vez. Onde é que isso vai parar? tá me reconhecendo não ?!? vê a sardinha aí. Deixe que, no final das contas, se o caldo engrossar, dou um jeito”. E assim, foram-se Mateus, Lucas e Marcos à pesca. 3 Enquanto isso, ainda perto dali, Judas, com a grana que Pedro lhe passara pra comprar a cerveja, divagava: “bom, que eu saiba, cerveja boa tem lá na Baviera, mas é longe pra chuchu e a cerveja de lá é mais amarga, não é a preferida do Mestre... ah, mas vou pagar pra ver. Quero que, finalmente, ele mostre seus poderes para todo mundo, e transforme a cerveja numa mais gostosa - e mais geladinha - além do que, a de lá está mais barata, e assim embolso 30 moedas”. Aqui vale uma explicação. Além dessa questão de ordem pessoal, havia outra, mais... prática. Naqueles dias toda aquela região era dominada por um tal César. Não era inca, muito menos maia mas, na verdade, romano. César, inovador, queria padronizar o visual de seu império, daí que toda a cidade havia se transformado num grande canteiro de obras, chamado de “Jerusalém-Cidade”. Só que tanta obra e tantos tapumes prejudicaram o comércio local, diminuindo os postos de venda onde Judas poderia encontrar a cerveja que, pela escassez de oferta, andava caríssima e, pra piorar, era “batizada”. 4 E o tempo ia passando, e nada de ninguém voltar. Jesus, com a mufa quente por tanto serviço e a boca seca, para passar o tempo convoca uns discípulos que estavam por ali: “Aproximem-se.” “João, beije minha mão”. João, honrado, obedeceu. “José, beije meu pé”. E José, todo satisfeito, cumpriu a ordem. Jesus, avista um discípulo e o convoca: “Ramalho...” “Ramalho? Por que afasta-se ?!?!!?!?” Por essa hora, Ramalho já se encontrava na rua, um tanto assustado, com o passo acelerado, por entre os gentios e soldados romanos. 5 Já com fastio por tanta demora, Jesus deu o braço a torcer, operou um milagre e, naquele momento, para surpresa dos pescadores, a rede de Mateus, Lucas e Marcos ficou abarrotada de sardinhas. Coisa de uns 100 kgs. E eles louvaram o Senhor (embora tenham achado um certo exagero; ficou pesado pra caramba levar tanto peixe até o Mestre – mas, fazer o quê...). Pelo seu lado, quando nem na Grécia havia chegado ainda, repentinamente Judas se vê na germânia, frente a um mestre cervejeiro, que falava uma língua enrolada mas, embora não estivesse em Roma, quem tem boca vai à cerveja e assim, por meio de gestos, Judas comprou a tal da encomenda. No entanto, Judas não podia esperar pelo que estava por vir. Jesus, ciente da predileção de Madalena por champanhe e para que ela não o aporrinhasse enquanto tomava sua cervejinha com os amigos (sim, o champanhe ainda não havia sido criado, na verdade seria só dali a muitos séculos, dizem que por um seguidor Seu, um tal de Perignon, mas, já que estamos tratando de milagres...), teletransportou Judas para o norte da França onde ele, a contragosto, foi obrigado a gastar aquelas 30 moedas que havia economizado, comprando o champanhe (coisa cara, já então). E nesse momento, Judas não se deu por rogado: “ah, deixa Ele comigo. Noutra hora arrumo essas 30 moedas”. 6 Finalmente eis que todos chegam com as boas-novas, Judas com as bebidas e os outros três com o monte de peixes. “Salomé, frita aí uns peixinhos pra gente”, ordena Jesus. “Judas, passa pra cá essa cerveja!”. Mas, eis que, já no primeiro gole, Jesus nota que aquela não era sua cerveja predileta. “Pô, Judas, que traição!! Você tá careca de saber que prefiro as belgas! Afasta de mim esse cálice!”. Tomé arregala os olhos: “Fala sério Judas! Não acredito no que você fez!”. “Não acredita?”, questiona veementemente Jesus. “Então, toma, bebe aí pra você ver”. “Ah... eh... tá bom, Mestre, já estou vendo que não é das melhores. Não precisarei beber. Brigado...”. 7 E, em verdade vos digo que, naquele dias, até Pôncio Pilatos, político local, avisado da crescente influência de Jesus, também procurava aproximar-se Dele e, quem sabe, descolar até uma foto abraçados. “Sabe como é, a campanha... a eleição taí...” assumiria, procurando disfarçar seus inconfessáveis interesses que navegavam de acordo com a maré. Dito isso, eis que Pilatos, que havia acabado de surgir na área, dirigiu-se logo para a cozinha, de olho naquele suculento cardume de sardinhas, também recém-chegado. Salomé, procurando manter alguma mínima ordem, dispara: “Seu Pilatos, lá fora tá a maior poeirada, ide pelo menos lavar vossas mãos”. “Que lavar as mãos o que, mulher!”, retrucou o caudilho, arrematando: “Tô cheio de fome, sai da frente!”. 8 Enquanto isso, no salão principal, Jesus, pra lá de aborrecido, acreditando ser aquela cerveja a “batizada” da região, decide o que fazer com tudo aquilo: “Que saco! querem saber? peguem essa porcaria de cerveja e devolvam a César o que é de César!”. Mas os discípulos, alarmados, quase em pânico – já que tinham sede e qualquer lembrança do mal-estar da noite anterior já tinha sido apagada de suas memórias - em uníssono suplicaram: “experimenta, experimenta!” e, com esse aparente mantra, conseguiram demovê-Lo de tal idéia. 9 E assim, se passou aquela segunda-feira; a cada nova garrafa aberta, como de costume, a cerveja tornava-se mais saborosa aos paladares dos convivas e todos deram graças ao Senhor por tal fartura de peixes e bebida. Apenas Madalena, no seu canto, estava um pouco arrependida, por não ter aproveitado para pedir a Judas pra dar uma passadinha em Paris e trazer uns cremes Lancôme.