Quando era bem jovem, lá pelo início da adolescência, tinha uma fantasia que me repetia com constância (mas não, não falo desse tipo que porventura pensou, essas fantasias típicas da tenra idade e do onanismo): inocente, apenas imaginava a cidade vazia, sem absolutamente nenhuma pessoa a não ser, talvez, um ou outro escolhido por minha soberana vontade.
Como num filme de ficção-científica/catástrofe, imaginava as ruas e avenidas sem carros, sem sinais vermelhos e engarrafamentos. Os shoppings vazios, com tudo o que expõem e ofecerem de graça, “pegue e leve”. As melhores casas, mansões, carrões, tudo disponível. Tudo meu, tudo eu! (além das questões do bel-prazer não haveria o atual problema da insegurança; nada de falsas blitzes, arrastões, seqüestros-relâmpago ou fictícios, latrocínios e quaisquer outras "instabilidades de caráter" a que todos estão expostos – até a presidente do Supremo Tribunal)
Talvez outras pessoas tenham idéias assim na infância ou adolescência ou, quem sabe, através da vida. Eu, ao menos, consegui me livrar delas pois afinal, de que serviria um mundo, esse mundo que conhecemos, sem ninguém?
Um mundo de tamanho silêncio que, mesmo longe da praia, seria possível ouvir as ondas quebrando nas avenidas à beira-mar. Um mundo onde não haveria ninguém para produzir a variada gama de alimentos que desfrutamos. Um mundo onde não haveria ninguém para produzir a necessária energia para fazê-lo funcionar, ninguém em usinas nucleares, termo-elétricas ou hidrelétricas. Que noites silenciosas e negras teríamos! E quando os alimentos estocados nas residências, restaurantes, mini, super e hipermercados começassem (e seria rápido, bem rápido) a estragar e apodrecer, quantos organismos infecciosos não apareceriam? E com as águas das piscinas e reservatórios paradas, sem limpeza ou bombeamento, que variedade de doenças não iriam produzir? Ainda: o que falar dos remédios nas farmácias perdendo, cada um a seu turno, a validade e eficácia?
Não haveria, portanto, energia elétrica, saneamento, água potável, limpeza urbana, manutenção de estruturas, controle de pragas ou zoonoses. Não haveria combustível para viajar para outros lugares (lembrando que mesmo se fosse possível alcançar – sem energia elétrica – o combustível nos tanques dos postos, ele também se deteriora em poucas semanas ou no máximo alguns meses) e nem ninguém para comandar os navios ou aviões (nesse aspecto, também não haveria controle aéreo mas ao menos isso seria dispensável; diferente de agora). Clínicas, médicos ou hospitais só existiriam na, então, apavorada lembrança.
Assim, as cidades – pequenas ou grandes - seriam áreas proibidas, repositórios de inúmeras doenças e seus transmissores. Teríamos que fugir para o campo, uma área rural longe do que atualmente significa “civilização”, levando conosco apenas o que fisicamente conseguíssemos carregar ou, no máximo, até onde a autonomia dos carros nos garantisse ir (desde que tivéssemos suas chaves; “ligação direta” é coisa só dos velhos filmes já que agora eles – os carros – nem mais aceitam esse “truque” e, ademais, quem aí sabe fazer ligação direta?), e lá tentaríamos preservar nossas vidas não sem antes desempenhar um esforço enorme a fim de manter o equilíbrio psicológico.
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Essa fantasia juvenil, exposta agora, tardiamente, é apenas para mostrar o quanto precisamos e dependemos do “próximo”, desde que cada um dos próximos desempenhem satisfatoriamente seus papéis. Jean-Paul Sartre bem observou que “o inferno são os outros”, por sua potencialidade de apontar nossas falhas e erros, servindo como perfeitas consciências que, usualmente, podemos teimar em deixar de lado e porque “os outros” são, muitas vezes, o anteparo que dificulta ou impossibilita a concretização de nossos projetos. No entanto, no ponto onde chegamos, eles são de importância capital. Vital, ao pé-da-letra.
(Posfácio: Dito isso, não tenha medo de sair à rua dizendo para cada um que vir: “eu não vivo sem você!”. Errado(a) você não estará. Talvez seja, apenas, mal interpretado(a). Dou-lhe uma idéia: imprima – e traduza, onde necessário – uma cópia desse texto e, antes que seu interlocutor consiga dizer algo, visto que estará boquiaberto, atarantado, enfie em sua boca o texto e saia correndo para repetir a cena com mais alguém)