quinta-feira, novembro 23, 2006

Apesar de tudo, sonhos (terceira parte; final)

Finalmente a turba encastelada na suíte presidencial deu sinais de que iria partir, a arruaça arrefeceu. O som foi desligado e, para alívio e satisfação do gerente, a conta foi paga - embora, estranhamente, direto na saída do estabelecimento. Marluce foi enviada para arrumar a bagunça e (decerto) ver os estragos deixados; “esse pessoal joga as toalhas na piscina e até dentro do sanitário; uma droga...”.

Enquanto segue pelo longo corredor de serviço que leva até a suíte presidencial, Marluce ouve, vindo lá de fora, um som alto, música de gringo. No momento em que os homens deixam o motel ouvindo o rapper 50 cent e cantando os pneus da pick-up, Marluce abre a porta do quarto.

A pequena geladeira está aberta, bebidas encharcam o carpete e, no ar, além do pequeno lustre ainda balançando sobre a mesa de refeição, a camareira identifica o cheiro da erva delinqüente queimada. Apressa-se a secar o tapete e nota que lá dentro a TV ainda está ligada no “canal privé”. Isso não a incomoda mais; “sempre deixam nesse canal, parece que é de propósito”.

Com tédio, entra pela ampla suíte; passa pela hidro, as duas saunas, um jardim-de-inverno com a diminuta piscina. De repente, sobressalto: ouve soluços, gemidos nervosos, choro em convulsões, pranto engasgado. A moça loira jaz caída ao lado da cama, nua, olhos injetados, rosto vermelho, com marcas de poderosas mãos pelo corpo, um corte junto ao lábio inferior, as coxas machucadas. A moça olha para Marluce, expressão embotada, como se tivesse nascido naquele momento, como alguém que não sabe quem é ou, ao menos, o que era até chegar ali, abatida em ruína física e moral, tal um anjo caído. Parece estar em um outro mundo e apenas segue soluçando, as lágrimas já inexistentes, a saliva engrossando nos cantos da boca.

A loira, aparentando pedir clemência pelos erros que a levaram até ali, estende um tíbio braço em direção a Marluce, como um profano Adão no famoso afresco vaticano de Michelangelo. Marluce mecanicamente obedece. Senta-se no chão envolvendo a menina num abraço, ambas atônitas, os olhos marejados. A moça apóia a cabeça no peito da camareira e as duas permanecem longamente em silêncio, rodeadas apenas pelos lamentos da garota. Marluce lembra de sua própria infância. Entende que, finalmente, ainda que de forma excêntrica e inesperada, estava cuidando das dores de uma criança indefesa e órfã, como sempre havia sonhado.

-o-o-

Marluce continuou deitada em sua cama por mais algum tempo, sonhando com a imagem da débil moça no motel. Acordou às cinco horas, como fazia todos os dias. O despertador a fez voltar ao mundo e à sua vida, lembrando-a que lhe esperavam o ônibus, a novela, as noites solitárias e a farmácia, o caixa e os cartões dos clientes.

“Bom dia. É à vista ou parcelado?”.

Apesar de tudo, ela tinha sonhos.

FIM

(docemente inspirado em “Janaína”, Biquíni Cavadão)

9 comentários:

Ane Brasil disse...

CARACA! muito bom, muito bom mesmo! muito superior até a fonte inspiradora! Rapá, gostei!
Sorte e saúde pra todos!

Anônimo disse...

A-do-rei!

Frederico disse...

Obrigado,obrigado Hane & Ane! também gostei do resultado final, ficou bem amarradinho (eu acho).

Anônimo disse...

Nossa!!
Muito bom mesmo!! Reprodução da vida de muita gente...
Beijos!!

Anônimo disse...

Gente!!!
Essa Marluce devia escrever um livro com tamanha imaginação! Um disperdício ela alí naquela farmácia. Um livro ou um roteiro de novela. Superb!
Beijos Fred!

Frederico disse...

Soraia, vc tem razão sobre essa imaginação da Marluce. Deve ser muita vontade de mudar, de "ser alguém", quem sabe... Merecia uma análise; mas como isso, aqui nos trópicos, é "coisa de bacana" eu, se pudesse, diria para ela ir se divertir, num pagode, num samba desses que têm por aí; já é, afinal, uma boa terapia. :-)

Suzi disse...

Show de bola, Frederico!
Como eu disse num dos capítulos anteriores, o mais legal dos contos são as entrelinhas... Aquilo que não é dito mas nos faz pensar que foi; que nos leva a pensar. A gente não escreve compalavras, apenas, não é mesmo?
"Apesar de tudo, ela tinha sonhos."

Gostei.
Beijo.

Eu não sei, você sabe? disse...

Fred, gostei muito também!
Prezo demais, demais mesmo imaginação, e essa voc~e tem de sobra, muito mais que Marluce, com certeza!
PArabéns!

Anônimo disse...

Fred, amei! Todos nós temos dias de "Marluce". Afinal, quem nunca sonhou com uma nova vida?
Bjs, Carla.