sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Rastros de sangue

Gosto dos velhos filmes de western; sempre gostei. Lembro que nos idos tempos, quando assistíamos à Ilha da Fantasia na TV, imaginava que minha vontade no tal seriado seria viver o dia-a-dia de um cowboy, com direito a Saloon, esporas, rifle Winchester, pistolas Colt ou Smith & Wesson, duelos, pôquer, pradarias e tudo o mais que compõe aquele cenário de, literalmente, bandidos e mocinhos.

No final de dezembro assisti a um clássico do gênero, Rastros de Ódio, com o ícone John Wayne dirigido pelo mítico diretor de faroestes, John Ford. Hoje, lendo as diversas manchetes sobre a barbaridade ocorrida nesse Rio de Janeiro na noite de quarta-feira, o nome daquele velho filme me veio à mente.

-o-o-

Não chego a comungar e, na verdade, estou longe das idéias do budismo sobre a harmonia que deve haver entre todos os seres vivos. No entanto, tenho inabalável convicção que todos eles, animais ou vegetais, merecem respeito. Até mesmo insetos - que devem ser muitas vezes eliminados, já que portadores de doenças - devem ser mortos rapidamente. Nada justifica torturar a aranha, uma barata ou uma mosca (ainda que essa idéia seja inusitada ou até mesmo risível). Assim, muito menos se deve eliminar um ser animal superior sem motivos fortemente justificáveis. Repito, acredito que temos obrigação, principalmente pela tal Razão que nos foi concedida, de respeitar os animais.

O que dizer, então, sobre o respeito a um animal absolutamente semelhante a nós? esse ser tem uma vida e essa vida é chamada de humana. No entanto, cada um desses seres - e são bilhões - tem o que chamamos de "livre-arbítrio". Fazemos o que queremos (ou tentamos fazer), até que algo nos prove o contrário, ou a impossibilidade. Se eu quiser voar por meios próprios, posso tentar, embora saiba que - à exceção de um milagre - vá despencar e provavelmente morrer. No mesmo tom desse exemplo extremo, podemos fazer infinitas coisas, muitas até bem menos letais, ao menos para o agente ativo da ação. Podemos, como derradeiro exemplo, bem escondidos, sob as trevas da noite e distantes de tudo, matar uma pessoa. Mas, no geral, não fazemos. Os motivos todos sabemos e dispensam ser elencados.

-o-o-

Vivemos em um enorme grupo social. E o grupo - seja a cidade, o estado ou o país - é composto por cada um de seus membros e pela totalidade de seus atos. Esse organismo, o grupo social, depende de que cada uma dessas "células" exerça, dentro de um razoável e aceitável leque de ações, sua função, seu papel. Há uma espectativa sobre o deputado, o vendedor, o prefeito, o motorista, a mãe, o filho, o guarda, o médico, o jornalista e, até, o bandido.

Uma atitude inumana, ignóbil e monstruosa como a que ocorreu nessa noite de quarta-feita, nos subúrbios entregues ao próprio azar da cidade do Rio de Janeiro, é completamente inaceitável e quase incompreensível. Há teses, sociais, culturais e históricas (além das políticas e econômicas), mas tudo passa pelo completo desarranjo em que nossa sociedade vive.

No Brasil, já se disse muitas vezes, o indivíduo pode chegar a ter vergonha de ser honesto, face à completa desordem a sua volta. Nesse momento, como se isso fosse um desrespeito com tantas dores que nos cercam, chego a ter vergonha de ser feliz.

6 comentários:

Anônimo disse...

Bom, muito bom.
Strix.

Anônimo disse...

É... eu disse aqui em casa que chego a sentir vergonha de pertencer à raça humana.

Liliane de Paula disse...

Frederico, minha raiva maior é vê que esses marginais continuarão com direito a vida e certamente destruindo outras vidas. Imagino até quando o menino estava consciente e apavorado aguardando a ajuda da mãe. Que horror! Que terror!. E a gente vai ficar aguardando o próximo crime violento. Com a corja eleita para fazer leis ou mudar leis, tá difícil. Impossível até.
E viva "meu paraiso".
Liliane de Paula

Frederico disse...

ADENDO: Talvez não seja a maioria das pessoas, mas algumas apontam o dedo para "as autoridades, políticos, juristas, sociólogos e 'pessoal dos direitos humanos'" dizendo que esses são os culpados por essas barbaridades que assistimos. Sim, eu mesmo sou, muitas vezes, contra a conversa mole "do pessoal dos direitos humanos". No entanto não podemos deixar de ter em mente que quem matou brutalmente o garotinho, ou que colocou fogo no ônibus dia desses na Linha Vermelha, ou incendiou há mais de um ano um outro ônibus do subúrbio (e que matou a sociality no Leblon, queimou a família no interior de SP, tortura e mata tantos outros diariamente em "becos escuros onde explode a violência", etc e tal) não são ETs. São produtos disso que ainda chamamos de sociedade, na qual vivemos, da qual fazemos parte e a qual construímos. A culpa objetiva é, decerto, dos sujeitos que aparecem sem camisa, ladeados por policiais. Mas a culpa remota, em graus maiores ou menores é de todos - todos que estão aqui e todos que vieram antes de nós. A sociedade brasileira gestou o monstro, pariu, alimentou-o e agora - como numa escura e soturna floresta - foge dele.

Kristal disse...

Não tenho a intenção e nem a pretensão de apontar culpados.
Deixo essa tarefa para os juízes.
Não acredito em deus, mas me comporto como se êle existisse.
Lamento a violência terrível que existe desde Jack, o estripador, em Londres, ou ainda muito antes disso.
Sou feliz e não me sinto culpada.

Denise S. disse...

muito lúcido o seu texto, Frederico! muito bom!