terça-feira, julho 11, 2006

As dores do Brasil

1 - O menino nasceu no Natal de 1983. Sua mãe, Solange, então com 22 anos, deu ao garoto o nome de Pierre. "Nome 'importado', vai dar sorte", confiou. Menino negro, pobre, nascido em um país de terceiro mundo, na periferia marginalizada, Pierre cresceu.

Vida difícil, dia-a-dia aprendendo as dores do mundo em casa e na rua, sob o olhar da família que, lutando contra os descaminhos sedutores da adolescência de Pierre, consegue manter o rapaz "na linha". Pierre mantém-se na escola e consegue completar o 2º grau. Seus horizontes são curtíssimos mas teve família, tem a cabeça no lugar e vai trabalhar de servente em uma obra, na região serrana. Pouco tempo depois deixa esse emprego e começa a trabalhar como operador de caixa em uma grande rede de supermercados. No dia vinte e cinco de dezembro de 2005, Pierre completa 22 anos, a idade que sua mãe tinha quando ele nasceu. Está satisfeito com o que conseguiu, o emprego no supermercado parece ser estável; tem bom relacionamento com seus colegas e é bem visto na vizinhança onde ainda mora com a mãe. O ano de 2006 chega com suas novidades. "Daqui há seis meses, a Copa do Mundo!", exulta.

Em 16/01/06, uma segunda-feira, Pierre vai a uma praça encontrar com amigos depois do trabalho. Por volta da meia-noite, policiais em uma patrulha da PM, fazendo a ronda nas imediações, ouvem disparos. Se dirigem para o local e encontram Pierre agonizando. Expira.

Poucos meses depois, Solange ingressa com processo na Justiça do Trabalho, solicitando o pagamento das verbas rescisórias devidas ao filho morto, ainda não pagas pela grande rede de supermercados.

2 - Recebi um e-mail com o relato de uma amiga, mostrando-se decepcionada com a Justiça, com a forma que foi tratado seu problema e de sua mãe, com a desatenção de um Juiz com as diversas provas que ela procurava produzir. Lamenta estar decepcionada com as pessoas, com o baixo nível moral que se mostra em qualquer direção que se olhe, com "a podridão do ser humano", conforme diz. Mostro tal relato para uma colega que fica sinceramente consternada com a longa explanação e diz - corretamente - que só podemos pedir desculpas, embora nem saibamos onde se deram tais fatos. Mas há uma culpa e, ao final de tudo, é nossa - como membros do Poder Judiciário - e como cidadãos.

3 - Preciso de uma informação profissional, com urgência, do INSS. Remeto um ofício para aquela autarquia, pensando "quanto tempo isso irá demorar para ser respondido? Será que terei que reiterar? Será que depois de meses terei que enviar um Oficial de Justiça para 'arrancar' tal informação?". Há uma culpa, mas de quem? Devo me contentar em achar que o funcionário do INSS "não quer nada" ou talvez devo concordar em saber que ele tem outras centenas de pedidos como aquele? Mas será que é inevitável, é inexorável, é uma fatalidade (como sempre gostam de falar na TV) o fato de ele ter centenas de pedidos? Não há forma nesse mundo de os serviços do órgão da seguridade social serem mais eficientes?

4 - A moça vai tentar resolver um pequeno problema, mas que produz graves conseqüências, em uma seção eleitoral do TRE. Fica satisfeita em ver que não há filas, as eleições ainda estão razoavelmente distantes. A funcionária, vendo que a cidadã é de outro estado diz que infelizmente nada pode fazer, e que a eleitora vai ter que ir até seu estado natal. A moça vai embora, mas resolve insistir na seção ao lado. Uma simpática servidora resolve seu problema em menos de cinco minutos.

5 – Dois rapazes chegam do exterior, de viagens distintas. Suas malas aparecem abertas na esteira da área de desembarque; perfumes, pequenos presentes e um laptop “último modelo” desapareceram. As companhias aéreas afirmam não terem responsabilidade sobre os bens. Tampouco é responsabilidade da empresa de infra-estrutura aeroportuária. Se os viajantes quiserem algum ressarcimento provavelmente terão que procurar seus direitos na Justiça.

Será que não há forma de o Juiz daquele processo da amiga ser mais interessado? decerto existem muitos lugares por aí em que o poder judiciário funciona melhor. Por que aqui é assim? Não haveria forma de Pierre estar vivo? E, já que morto está, não haveria jeito de uma grande empresa cumprir dignamente sua obrigação? E a investigação do crime? Não poderia ser mais eficaz, principalmente quando sabemos que uma porcentagem enorme dos homicídios ficam sem solução? E não poderia ter maior responsabilidade sobre seu trabalho a servidora pública da seção eleitoral? E a Justiça, será que dará a devida atenção e solução para o descuido da empresa aérea (ou seja lá de quem for a culpa) em relação aos bens roubados? Por que em outros lugares isso não ocorre?

Para todos esses questionamentos (e tantos outros) há respostas e até soluções, ao menos em teoria. Mas que parecem inexeqüíveis por questões múltiplas que podem ser encerradas na conclusão que se segue, lápide de um fato ocorrido num lugar obscuro, na periferia da cidade e da sociedade.

O corpo de Pierre foi levado para o IML. Lá, o legista, em seu laudo, informou que Pierre morreu devido a "hemorragia interna, lesão de pulmões e traquéia, ação pérfuro-cortante", com ferimento nas costas, exibindo "ferida ovalar no dorso, em região escapular direita, compatível com entrada de PAF [projétil de arma de fogo]" e com os "pulmões transfixados nos lobos superiores (...), com o terço superior da região torácica esquerda com uma ferida (...) compatível com saída de PAF". Portanto o laudo afirma que Pierre foi alvejado aparentemente por um projétil de arma de fogo que entrou pelas costas, parte superior direita, atravessou os pulmões, destruiu sua traquéia nesse caminho, e saiu pelo peito, lado superior esquerdo do tórax.

Examinando os autos do processo trabalhista interposto contra a grande rede de supermercados, encontramos o boletim de ocorrência da polícia civil (e que integra, originalmente, o processo de investigação) afirmando sobre o mesmíssimo caso, categoricamente, em relato de um policial militar, que, além de Pierre haver sido atingido por "bala perdida", não houve testemunhas do fato e que o corpo "foi encontrado com perfurações na cabeça".

12 comentários:

Anônimo disse...

Diante do cansaço mental e físico que ainda me domina, não me sinto capaz de escrever muito ou escrever o que queria, provavelmente amanhã ou depois vai passar, minha mente voltará a ficar clara, minhas emoções estabilizadas e meu físico descansado, aí então amigo, voltarei aqui. Por hora o que consigo dizer é OBRIGADA.Beijos Tê

Anônimo disse...

E dessa vez, diferente de outras, é tudo a absoluta verdade.

Anônimo disse...

Embora absurdas as histórias, eu acredito em todas. Também tenho uma pra contar: o Jean-Pierre, meu companheiro, ficou quase uma hora preso em uma sala no aeroporto internacional do Rio sendo interrogado pelos Federais, que fingiam não entender o inglês que ele falava, numa clara tentativa de extorquir-lhe alguns Euros. Só o liberaram quando Jean-Pierre teve a idéia de comunicar-lhes que sua acompanhante tinha um passaporte diplomático brasileiro. Foi sua primeira visita ao Brasil mas, graças a Deus, não será a última.

Patrícia Cunegundes disse...

Como já disse no zeromeiaum: "este é um país que vai pra frente, ô ô ô..."

Anônimo disse...

È Fred, o que fazer em cada uma dessaas situações, Será que elas teriam que terminar desse modo? Acho que nñao...acho que tudo se refere ao poder..é o poder que o juiz tem de impedir que provas sejam mostradas....é o poder que a funcionária tem de brecar , ou dificultar a vida da moça...Acho que tudo se resume nisso...principalmente no que concerce ao funcionalismo público...seja p juiz, a jpolícia, a técnica judiciária....as pessoas se enchem de soberba quanto a isso..porque de um certo modo elas podem mudar ou não a vida de outras pessoas...não entendem que o funcionário publico recebe seu salário do povo e que está ali para servir o povo e não a si próprio ou a mais poderosos...ou ao governo que é o seu "chefe", no funcionalismo publico não existe chefe..o chefe somos nós, o povo...o funcionário publico deveria ficar orgulhoso disso, de servir ao seu povo....acho que se a mentalidade mudasse as coisas melhorariam.....não acha?

Frederico disse...

Teresa Granato: sim, tudo poderia ser diferente. E, sabe, acho que infelizmente a questão vai ALÉM do funcionalismo público. Se fossem só os “relapsos” funcionários públicos o único problema dessa terra, a solução seria até viável. Não estou procurando defender a “minha classe”; é claro que boa parte não tem o comprometimento necessário. Mas falta de concentração e seriedade se vê em todas as áreas. Sim, concordo que a questão em tela é a “coisa pública” se faz mais sensível para todos. Odiando isso ou não, todos precisamos do “público” (aliás, em mais de um sentido, mas aí é outra história). Esse desgoverno em SP, por exemplo... pensei em utilizá-lo em um “Dores do Brasil 2". Mas não vou; esse assunto me traz pesar, tristeza. Não vou ficar batendo nessa tecla. Todos sabemos e sentimos os problemas do Brasil; abra o jornal, leia as “cartas dos leitores” e verás uma miríade de desacertos. Sim, poderia ser diferente. Mas só “poderia”. Já desisti.

Claris disse...

Frederico... Sagá é apelido..rs O nome é Clarissa... (mas foi só pra constar...)

Obrigada pela visita no Zipadas e eu concordo com seu pessimisto completamente bem fundado... fazer oq... pegar em armas??? SIM, EU PEGARIA! Mas sozinha é demais... não tenho vocação pra mártir!

Estou bem na pressa, então uma resposta melhor fica pra depois...

Abraços

Anônimo disse...

Fred , claro que não estou usando o funcionalismo público como bode expiatório até porque existem ótimos funcionários publicos. Venho de uma família de FP, minha mãe, meu pai, eu, meu ex marido...estou tentando entender tudo isso que acontece no Brasil..quando mexe com nossa vida ái a gente começa a ver o absurdo desse país.

Claris disse...

Voltando... agora em pressa.
Hoje tive tempo de ler o seu post, que causa mais indignação ainda. Vejo alguns motivos bestas e superficiais que colaboram para que as coisas sejam da forma que são.
1.falta de caráter, boa vontade e profissionalismo em diversas partes.
2.síndrome de país pobre que funciona mal, ou seja, todos acreditam que as coisas são -como se crônicamente fossem- ruins e que não podem melhorar, não contribuindo de nenhuma forma pro contrário.
3.falta de vontade política da população, profissionais e poderes.
Julgo que a maioria da população está acostumada a ter uma "elite intelectual e política" que pense e tome decisões por ela, criando na mesma uma inércia gigantesca que os impede inconscientemente de agir seja lá como for. Observo que isso já virou uma válvula de escape para a falta de responsabilidade social dos próprios cidadãos, 'se quem pode não faz, porque eu o faria?'.
O pior é que meu maior medo é o de que aqueles poucos que pensaram em agir de alguma forma nesses dias de violência extrema hoje tenham amanhecido com amnésia, esquecidos dos fatos, já que os ônibus voltaram a circular pela cidade...

Frederico disse...

Sagá, achei muito boa sua análise (como lá no seu blog) e, em especial, "síndrome de país pobre que funciona mal, ou seja, todos acreditam que as coisas são - como se crônicamente fossem - ruins e que não podem melhorar, não contribuindo de nenhuma forma pro contrário". E disse ainda muito bem sobre "se quem pode fazer não faz, seria eu quem iria me mexer? eu não!". Mas e aí? o campeonato recomeça, o ônibus voltam a rodar e nada (nunca) muda.

Claris disse...

Pois é, e assim as coisas vão. Estou pensando em algumas coisas, mais pra frente te falo.
Enquanto isso, passe no Zipadas para votar no nosso logo!
Abraços

Anônimo disse...

Frederico, tu me autoriza reproduzir parte desse post no meu blog? (a parte que versa sobre o jovem Pierre)
Cara, acho que é um compormisso nosso tá denunciando esse tipo de putaria (putaria sim, no pior sentido da palavra, não me ocorreu outro adjetivo pra descrever a coisa) que, todo o santo dia, vem rolando por debaixo da ponte, por debaixo dos nossos narizes.
Cara, ese tipo de coisa me eixa muito, mas muito indgnada mesmo.
era isso, mermão!
Sorte e saúde pra todos!