quarta-feira, janeiro 17, 2007

Observações

E continua a chover no Rio de Janeiro. Lembrando “Bye-bye Brasil” quando cita a constância do sol, aqui parece que é a chuva quem nunca mais vai se pôr. E foi nesse cenário de chuva intermitente, garoa fina “que vem e que passa” (mas torna a voltar), que o observei.

Manhã ainda bem recente, já estava aquele rapaz com sua camisa e bermuda surradas, chinelos bem gastos e sacolinhas de balas. Diariamente ele se coloca ali, no cruzamento entre a grande praça Paris e sua diagonal, o Passeio Público, onde começa a Lapa e o Centro. É um rapaz magro, bem franzino. Nunca o encarei de perto mas, salvo engano, acho que é estrábico. E marca ponto naquele espaço, com seus saquinhos de balas de terceira categoria, procurando vendê-las a algum motorista, faça sol ou, como hoje, chuva.

Quando virei a curva para avançar sobre a Lapa em direção ao tribunal, o sinal estava fechado e não havia carro algum; fui o primeiro a chegar. Na outra ponta do cruzamento, no sinal do tráfego que vem do centro, estava o rapaz, aguardando o sinal fechar e, talvez, algum vidro se abrir. Observei-o em sua solidão, cabeça baixa, mexendo em suas traquitanas. A uns quinze metros de distância eu também estava sozinho no carro que, por sua vez, não encontrava par no sinal. Ah, sim, eu sei, que solidões... mas, que vergonha, elas são tão diferentes!

Naquele momento tão matutino, um único pensamento invadiu minha cabeça, uma questão que, na ausência do sono nessa hora que já se insinua pela madrugada, me acompanha desde a manhã: qual é a diferença entre mim e aquele moço? Qual? Nenhuma, absolutamente nada. A meu ver, uma questão cativa do acaso e nada mais: eu em meu carro, vidros travados, ar ligado, bem alimentado; vindo do conforto e bem-estar da cama, da casa, da família; indo para o bom trabalho, seguro, estável, para a lide diária processual. Em que sou melhor que ele? Eu sei, não tenho dúvida: em nada. Acaso.

Sim, carece de exposição; sei que faço coisas que ele não sabe mas, e daí? Nada inato; tudo aprendi. Por sua vez, quem sabe?, o humilde e raquítico rapaz das balas vagabundas pode saber coisas que desconheço e que nem conseguiria executá-las ou manejá-las. A opção “coisas-da-vida-e-da-rua” é uma boa aposta nesse quesito. De mais a mais, deixando conjecturas de lado, em uma coisa sei que ele é “melhor” que eu (com vigorosas aspas porque não se trata de achar fatos melhores ou piores, em mim ou nele. São contingências; vicissitudes ou bônus): ele tem uma determinação que eu não teria. Claro, tudo é tese. Assim, pois, do meu ponto de vista não me parece que teria tal força de vontade.

(É óbvio também que é “do meu ponto [privilegiado] de vista”; e desse patamar tal resignação comercial no sinal de trânsito parece inviável. Mas, confesso, não consigo arrancar a alma do corpo – e da mente – ao observar seja lá o que for; quem realmente consegue, que se habilite e fique rico. Bom, muitas vezes serve fingir e se tornar charlatão, como uns que tem por aí escrevendo livros; mas tal "virtude" não aprendi.)

E aquela foto do início? Bem, o coqueiro da foto nada tem a ver com essa história, a princípio. Mas, novamente, quem sabe?

Ele está plantado em um lugar chamado Pousada Pitinga (.com.br), associada ao “Roteiros de Charme”, em Arraial d’Ajuda (o toque quanto à associação indica o clima da coisa). Observei um pássaro pousar em uma daquelas folhas do coqueiro; logo voou, seguiu sua vida. E naquele 30 de dezembro, pensei: “para que serve esse (ou qualquer) pássaro?”. Imediata resposta: “para nada!” e me completo, absorvido na divagação: “ainda bem que para nada porque os seres ou coisas não devem servir (e aí entenda-se “nos servir”) para coisa alguma. O pequeno pássaro é apenas ele, como tudo o mais "é", e como nós somos. Não sou, fundamentalmente, mais importante que ele (ao menos não me devo achar; se for relevante para a existência de algo ou alguém, então que me julguem assim).

Sem dúvidas e bem consciente: nem um pouco mais importante que o pássaro do litoral baiano. Nem um pouco mais importante que o persistente rapaz do sinal. Tudo e todos: iguais.

(Considerações sobre o que nos cerca, num momento em um país em que nossa vida de nada presta, em que podemos nos tornar vítimas sem amparo, seja pelo projétil que vem de cima, pela ponte que interdita o caminho, pela barragem que arrebenta e intoxica o rio ou o buraco que surge tragando gente. “Fatalidade”, palavra tão facilmente aplicada e pronto, a culpa vai se esvaindo.)

5 comentários:

Anônimo disse...

ô meu amor!!!Sua análise vem de coração mesmo eu sei porque. Nossa vida é maravilhosa, temos tudo: saúde, paz , trabalho, sorte e principalmente temos um ao outro... e isso tudo nos faz pensar o que fizemos para sermos merecedores de tanta felicidade.Só nos resta a agradecer a Deus todos os dias por tudo e tentar fazer um pouco pelos outros! Te amo!!!
Beijos Kika

Denise S. disse...

lindo texto, Frederico, depois vc diz que eu que ando inspirada. Curioso, pq às vezes sou tomada por divagações assim - olho para as pessoas passando e penso "cada pessoa, uma vida, cada vida, um problema, uma delícia. É assim mesmo, não? Somos humanamente iguais. Iguaizinhos, com as três certezas: a de que estamos vivos, a de que não sabemos o que vai nos acontecer e a que vamos morrer.

Anônimo disse...

Lindo texto, inteligente.

Mas quer saber mesmo a diferença entre voce e o rapaz do sinal?
Talvez ele nao teve a mesma oportunidade que voce teve na vida.

Giulia disse...

Caro Frederico, sem culpa! Quando a gente não consegue interferir, é porque não tem o que fazer. Sabe aquela letra: "...da natureza, onde não há pecado nem perdão"? Somos também natureza, natureza humana. Mas ainda não aprendemos todas as lições que a Mãe natureza tenta nos ensinar...

Anônimo disse...

Sabe a diferença? você gordinho e êle magrinho rsrsrsrsrs.
O pássaro serve para espalhar sementes e o pobre raquítico do sinal para vender as balinha dele. Pode crer que tem quem compre, senão não estaria sempre lá.beijinhos.